Leandro Guilheiro afirma no Encontro de Kodanshas que as regras estão asfixiando o judô

Um dos atletas mais técnicos de sua geração, hoje como técnico, Guilheiro mantém o foco no ippon © Isabela Lemos / fpjcom

“Quantas lutas são definidas hoje, pela arbitragem?”, afirmou o medalhista olímpico. “Quando estimulamos o judô de shidôs, estamos desestimulando o judô de ippons.”

Por Paulo Pinto / fpjcom
29 de novembro de 2023 / São Paulo (SP)

Para estabelecer novos conceitos de administração da modalidade, a diretoria da Federação Paulista de Judô (FPJudô) realizou no dia 18 de novembro, no auditório do Centro de Excelência do Judô, Teatro Inezita Barroso, uma mesa-redonda durante o Encontro Estadual de Kodanshas de 2023, mostrando os avanços da atual gestão e abrindo discussões sobre o futuro do judô em São Paulo.

Participaram do encontro grandes nomes do alto rendimento e da gestão esportiva, entre os quais Leandro Marques Guilheiro, medalhista de bronze nos Jogos Olímpicos de Atenas (2004) e Pequim (2008) e coordenador técnico do alto rendimento do Esporte Clube Pinheiros. Profissional qualificado, Guilheiro iniciou sua fala explicando que, para pensar como será o futuro do judô de São Paulo, primeiro é preciso entender como a modalidade chegou até aqui e como é praticada hoje.

“Provavelmente eu seja o mais jovem participante desta mesa-redonda e ainda estou em processo de aprendizado daquilo que convencionamos chamar de gestão esportiva. Sou relativamente novo em minha atual função no Clube Pinheiros e acredito que falar sobre futuro do judô seja algo realmente difícil para todos nós. Penso que seja muito óbvio, mas para podermos pensar de que forma será o futuro do judô de São Paulo, primeiro precisamos entender como estão as coisas hoje, e como chegamos até aqui.”

O medalhista olímpico destacou a complexidade da estrutura que caracteriza o judô atualmente, com professores envolvidos no kata, outros dedicados à arbitragem e outros ainda a setores administrativos. Mas, segundo ele, não é isso que atrapalha os adeptos e praticantes.

Guilheiro e Puglia observam o pronunciamento de Rogério Sampaio © Isabela Lemos / fpjcom

“Acabei sendo forjado na área competitiva e tive muita sorte em minha vida. Sorte por ter nascido em uma família que me deu condição de competir, sorte por ter pais – principalmente a minha mãe – que sempre me apoiaram muito, sorte por ter tido os professores que eu tive, sorte por ter tido uma oportunidade de aprender com uma pessoa como o Marco Antônio Rato, que me ensinou a lutar com canhotos. Então, eu sou um cara de muita sorte e, no fim das contas, minha vida acabou sendo direcionada para a competição.”

Guilheiro disse concordar com o sensei Hatiro Ogawa, que havia falado antes e afirmado que hoje é difícil até para os árbitros lidarem com as regras, porque elas não complicam só a vida do competidor e do treinador, mas o próprio judô. “Enquanto outros esportes buscam o lado mais objetivo e prático, estamos vendo um número cada vez maior de regras sujeitas à interpretação do árbitro. Como distinguir um falso ataque de um ataque efetivo? Em muitos casos a regra do judô hoje é dúbia.”

“A geração atual é analfabeta motora, em função dos hábitos modernos que levam os adolescentes a ficarem sentados o tempo todo.”

Cansado de ver atletas preocupados não em buscar uma projeção, mas em buscar três shidôs para os adversários, Guilheiro desabafou: “Acho que esta é a raiz de todos os problemas do judô competitivo. Estamos vendo várias lutas terminadas em 40 segundos com três shidôs. A principal meta dos atletas deixou de ser o ippon, para ser os três shidôs. Os mais experientes sentem isso quando encaram judocas mais jovens, que já vêm escolados nessa prática”.

E contou que ele mesmo passou por essa situação: “Tive uma lesão grave, fiz quatro cirurgias e fiquei dois anos afastado. Quando voltei a competir a regra já tinha mudado várias vezes, tanto que no final da minha carreira eu acabei perdendo por três shidôs. Se o atleta faz uma entrada e o adversário dá um passe para o lado, já leva um shidô. É realmente o antijudô e uma forma de engessar a modalidade.”

Guilheiro tornou-se comentarista de judô a partir dos Jogos Rio 2016, e acha que o judô de hoje não é nada atrativo. “Como traduzir para um leigo o que está acontecendo? Quem assiste a uma luta de judô quer ver um ippon, assim como quem vai vai a uma luta de boxe fica atento aos nocautes, e assim por diante. Quantas lutas estão sendo definidas pela arbitragem? Então, quando nós estimulamos o judô com shidôs, nós não estamos estimulando o judô. Quantas vezes a regra é assimétrica pela forma como é aplicada?”

Joji Kimura cumprimenta Leandro Guilheiro © Isabela Lemos / fpjcom

E exemplificou que dificilmente um atleta que já tiver um wazari a seu favor será punido com um terceiro shidô, mesmo que se jogue no chão. “E isso aconteceu agora, na final do campeonato europeu”, acrescentou. “O mais alarmante é que nenhum atleta ou treinador consegue entender o que está acontecendo.”

Para Guilheiro, várias situações relativas à arbitragem deveriam ser repensadas. “Existe sim uma série de regras que são oportunas, principalmente aquelas que protegem a integridade do atleta. Mas outras engessaram a nossa modalidade.”

Aprendizado e estímulos

O grande problema que o judô enfrenta na atualidade é a falta de estímulo para os novos atletas aprenderem e praticarem o verdadeiro judô, na avaliação do medalhista olímpico. “Os atletas não têm incentivo para treinar e aprender a buscar o ippon; são incentivados a ganhar a luta rapidamente e a qualquer custo. Acho que isso está estragando o judô em todos os aspectos, tanto para o praticante quanto para o leigo que assiste às lutas e para a mídia e a indústria do entretenimento, como um todo, que vêm no judô um espetáculo.”

O segundo problema apontado por Guilheiro tem muito a ver com a formação dele em gestão e em matemática. “Eu sempre me interessei muito por esse assunto, por artigos e estudos científicos do judô. No prefácio do livro do sensei Sato, professor do sensei Yamashita, ele fala muito da influência do seu sensei sobre adotar uma visão científica do judô, e a visão científica mostra como podemos fazer as coisas de forma mais eficiente e como podemos nos questionar.”

E mencionou uma prática muito adotada hoje, inclusive pela FIJ, que é a análise de dados. “Mas é algo que pende muito para a imagem que a entidade quer mostrar, ou seja, muito dos dados fornecidos não possuem o devido rigor, o rigor do que realmente é feito por eles.”

Guilheiro completou explicando que a grande causa disso é a falta de treinamento rigoroso na área de Matemática e Estatística. “Quando se fala de análise de dados no esporte profissional norte-americano ou, no futebol europeu, matemáticos, estatísticos e físicos, estão envolvidos no processo.”

O terceiro problema mostrado por Guilheiro envolve os judocas em formação, e está relacionado a imposição de muito treino físico de alta intensidade em detrimento do treino nos tatamis. “Não há outra forma de aprender a não ser a repetição”, afirmou. “É necessário repetir infinitamente os fundamentos, e eu acho que o judô carece um pouco de algo disciplinar mesmo.”

Joji Kimura, Leandro Guilheiro e Alessandro Puglia no encerramento do Encontro dos Kodanshas 2023 © Isabela Lemos / fpjcom

“Quando vamos ao Japão”, prosseguiu, “vemos que o judô acontece em algumas academias; em seguida, há mais um pouco de judô no colégio. Depois os jovens vão para as universidades e para os clubes de judô das empresas. Então, é muito definido em cada faixa etária quem toma conta do quê. No espaço profissional norte-americano há algo parecido: um jogador de basquete começa na escola, vai para o ensino médio e para a universidade e depois, talvez, para o esporte profissional.”

Nos países de Primeiro Mundo, lembrou Guilheiro, geralmente há centros de treinamento onde os atletas se concentram e o esporte de alto rendimento se desenvolve. “No judô brasileiro, porém, há pouco disso, predominando uma certa indefinição. Há um ou outro clube de alto rendimento, assim como academias que formam atletas, mas lamentavelmente muitos professores ainda impedem seus alunos de praticarem em outros dojôs.”

O quarto problema identificado por Guilheiro tem a ver com educação. Ele entende que no Brasil, de modo geral, o judoca vem de uma situação sócioeconômica desfavorável, e tem pouca instrução. Além disso, as crianças movimentam-se pouco.

“A geração atual é analfabeta motora, em função dos hábitos modernos que levam os adolescentes a ficarem sentados o tempo todo. No passado, a garotada subia e descia de árvores, andava de bicicleta, brincava na rua, empinava pipas. Hoje em dia os jovens passam dia e noite diante do computador ou do celular. Se eles têm dificuldade de correr, quanto mais de fazer um uchi-mata.”

E concluiu: “Se quisermos realmente desenhar o futuro do nosso alto rendimento, devemos rever toda a cadeia que permeia o judô desde a base, pois lá fora já se faz isso há muito tempo. Possuimos um quantitativo excelente, mas precisamos melhorar a qualidade e preparar as novas gerações com base no judô que praticávamos nos idos dos anos 1950”.

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