Após a decretação da quarentena, que causou o cancelamento da Copa São Paulo em março de 2020, a Federação Paulista de Judô (FPJudô) iniciou o longo e exaustivo processo de realizar eventos e encontros virtuais, recorrendo à inovação para unir e motivar a comunidade judoísta de São Paulo e do Brasil.
Nesse cenário, o judô paulista mais uma vez saiu na frente e estabeleceu os procedimentos que seriam seguidos por muitas entidades de administração estaduais e até mesmo pela Confederação Brasileira de Judô (CBJ).
Este conjunto de medidas e ações evidenciou o protagonismo de dirigentes, membros da diretoria, equipe técnica e 16 delegados regionais da FPJudô que, com base na prática e na experimentação, fizeram com que o judô paulista se mantivesse em atividade durante o período mais sombrio desde a fundação da federação, em 17 de abril de 1958.
Alessandro Puglia, vice-presidente da FPJudô, contou que, assim que a quarentena foi imposta, a primeira preocupação foi reunir os delegados regionais para discutir o que seria feito. Rapidamente, foram iniciadas reuniões via Zoom, formato de encontro virtual que até então nunca havia sido utilizado pela FPJudô ou por qualquer entidade de gestão esportiva. A reação do público foi imediata e houve grande procura pelos eventos, até mesmo de professores de outros Estados.
“As pessoas um pouco mais velhas sentiram a necessidade de buscar opões e isso aconteceu de forma natural porque todas estavam buscando agregar e manter a unidade da comunidade. E elas sentiram-se amparados e fortalecidas pelos encontros graças ao trabalho das DRJs, associações e filiados. Os delegados fizeram a divulgação necessária e procuraram dar tranquilidade aos associados, dentro da nova proposta de atividades virtuais. Mudanças na plataforma digital da federação permitiram que cada delegacia tivesse o seu próprio site dentro do portal da FPJudô. Isso proporcionou maior exposição dos eventos”, explicou o dirigente.
O professor Fernando Ikeda Tagusari, secretário geral do TJD e da comissão de ética da FPJudô e coordenador do departamento de oficiais técnicos da 1ª DRJ, acredita que o judô foi uma das modalidades mais afetadas neste período. Por isso, os praticantes, independentemente do nível, foram obrigados a repensar e reestruturar sua rotina, adaptando-a a esta nova normalidade.
“O judô é uma modalidade em que o contato físico é pré-requisito para que a luta aconteça. Por isso, sem sombra de dúvida, foi uma das mais afetadas. Os professores e praticantes, independentemente do nível, foram obrigados a repensar e reestruturar toda a prática, adaptando-a à nova normalidade. A solução encontrada fundamentou-se nos objetivos propostos pelo professor Jigoro Kano, que de maneira sucinta podem ser resumidos no aperfeiçoamento físico, mental e moral. Com isso nossas ações buscaram o aprimoramento do físico – o tandoku renshu (prática individual) já prevista no judô, a exemplo da primeira série do Seiryoku Zen’nyo Kokumin Taiiku – e da parte mental e da moral, segundo a metodologia do professor Kano, que compreende quatro itens, dos quais dois foram utilizados: o mondo (perguntas e respostas) e o kogi (palestras), sempre em ambiente virtual, por meio de módulos, competições, workshops e palestras.”
Após enfatizar a importante e decisiva atuação dos dirigentes mais novos, Francisco de Carvalho, presidente da FPJudô, destacou a surpreendente adesão de professores septuagenários às novas ferramentas.
“A atuação dos professores foi decisiva, inclusive daqueles com mais de 70 anos, que deram palestras online e não deixaram de participar das atividades. Na área técnica propriamente dita, professores como o Luís Alberto do Santos se envolveram de forma marcante, disponibilizando conteúdo e informações específicas em conjunto com o grupo técnico da federação. Muitas delegacias regionais surpreenderam positivamente, entre as quais destaco a 7ª DRJ Sudoeste, que apresentou uma programação semanal de cursos e palestras bastante consistente.”
O presidente da FPJudô detalhou o protagonismo dos seus delegados na realização de encontros virtuais. “A FPJudô possui a característica importante de divisão de poder, e não da centralização dele. Esse compartilhamento dá aos delegados responsabilidade semelhante à do presidente em suas regiões. Portanto, o envolvimento deles foi automático pela necessidade imposta naquele momento”, disse o professor Chico.
Diante do ineditismo da situação, desde o início foram apresentados os prós e contras de cada ação. Um bom exemplo foi o Campeonato Paulista de Fundamentos Técnicos, realizado no formato tandoku renshu.
“Além de mobilizar os filiados, esta competição foi uma espécie de piloto, planejando, já no final de maio, um possível cenário de exame de graduação em ambiente virtual. Os dados coletados durante a competição foram de suma importância e nos possibilitaram verificar como as técnicas poderiam ser avaliadas numa situação de tandoku renshu, e de que forma poderiam ser aplicadas nas condições de exame de graduação. Grandes nomes da Comissão de Graduação do Estado de São Paulo estudaram e estruturaram os critérios de avaliação: Dante Kanayama, Rioiti Uchida, Luís Alberto dos Santos, Yoshiyuki Shimotsu, Kanefumi Ura, Celestino Seiti Shira, Hatiro Ogawa, José Gomes Medeiros, Leandro Alves e Sérgio Lex. Em síntese, mesmo na incerteza de qual modelo seria empregado, em caso de impossibilidade de exame presencial, já teríamos tudo delineado para o ambiente virtual.
“O encontro virtual com os nossos delegados regionais em 2 de maio foi um divisor de águas. Nele foram expostas e discutidas as ações que pretendíamos adotar durante a pandemia. Esta foi a primeira ação programada para integração de todo o Estado. Outro importante ponto deste encontro foi estimular a realização de palestras, cursos e workshops em âmbito regional para aprimorar o conhecimento dos filiados. Isso permitiria aquisição dos pontos necessários para o cumprimento das atividades exigidas no exame de graduação, uma vez que já entendíamos que dificilmente seria presencial.”
A diretoria da federação paulista entende que conduziu todo o processo de maneira empática e transparente, buscando identificar as reais necessidades dos filiados naquele instante. Por tratar-se de um momento ímpar, os dirigentes não se furtaram de admitir que o erro era uma possibilidade e que algumas ações poderiam não atingir as expectativas. Assim, todos assumiram o compromisso de “errar rápido e corrigir rápido”, procedimento recomendado por Joji Kimura, coordenador técnico da entidade.
Obviamente não se tratava de um salvo-conduto para ações levianas e infundadas; todas as ações foram planejadas e analisadas em diversos cenários, os erros foram pontuais e serviram de aprendizado. Todas as questões foram tratadas com respeito, seriedade e empatia.
“A comunidade do judô é formada por pessoas diferenciadas e compreensivas e, de acordo com os feedbacks que recebemos, as ações foram positivas. Somos diferenciados por fazer parte da nossa constituição de judocas uma forte ligação com as bases filosóficas do judô, o que nos garante força, persistência e compreensão para enfrentar as adversidades. Nunca se fez tão verdadeiro o provérbio do professor Kano: judoca é aquele que possui inteligência para compreender aquilo que lhe ensinam, paciência para ensinar o que aprendeu e fé para acreditar naquilo que não compreende”, enfatizou Fernando Ikeda.
Ele relembra que seu saudoso professor Massao Shinohara definia o judô como caminho da vida. “Este momento nos permitiu extrapolar o conceito de judô apenas como esporte, principalmente no tocante às bases filosóficas, as quais se fizeram necessárias em vários momentos de 2020. Vale ressaltar que, para vivenciar o judô em sua plenitude, é necessário aliar a teoria à prática”, complementou o dirigente.
A federação estabeleceu um recorde aprovando quase 600 faixas pretas somente nos exames virtuais. Para os dirigentes paulistas, a entidade cumpriu seu papel no sentido de formar os faixas-pretas necessários para promover o fomento e a expansão presencial da modalidade nos 645 municípios que compõem o Estado de São Paulo.
Sobre o exame de graduação, a mais importante ação da temporada, Puglia explicou que, após todas as reuniões entre o departamento técnico e o presidente, discutiu-se a possibilidade de realizar os módulos online e gratuitamente para incentivar os candidatos a participarem naquele momento.
“Trabalhamos de forma muito transparente e pudemos executar esta ação com muita qualidade, cumprindo todos os requisitos técnicos de um exame de graduação. A FPJudô fez seu papel, enquanto instituição, na promoção dos candidatos. A graduação é uma conquista importante para todos os judocas e sinto que demos continuidade àquilo que precisávamos realizar, mesmo a distância e online”, avaliou Puglia.
Joji Kimura, coordenador técnico da FPJudô, considera o exame de graduação a principal realização da temporada. Ele possibilitou que a FPJudô se reinventasse e trouxesse ainda mais novidades, como a criação de uma plataforma específica, que deu aos candidatos condições de realizarem o exame de forma tão criteriosa quanto seria presencialmente. Prova disso é o índice de 0,8% de reprovação, pouco maior do que se costuma ver no exame presencial.
O coordenador técnico da FPJudô ressaltou ainda que os judocas estão tendo a chance de reconectar-se aos princípios e fundamentos do judô ao longo da quarentena.
“Nas conversas com os membros da comissão de graduação, tornou-se evidente que o judô estava sendo visto muito mais pela sua parte competitiva. Com essa virada para o ambiente virtual, muitos voltaram a estudar um pouco mais as áreas de fundamentos e história da modalidade. Esse foi um aspecto bem importante em 2020”, assegurou Joji Kimura.
Fernando Ikeda falou sobre o sentimento dos candidatos. “Considerando que o processo de graduação gera expectativa e dedicação, não poderíamos tratar deste assunto de maneira superficial ou leviana, mas sim com o máximo respeito. Mesmo com a impossibilidade de treinos presenciais e competições, a federação, por meio das delegacias regionais, realizou ciclos de palestras voltados não apenas à formação dos candidatos, mas de todos os envolvidos com o judô (não se restringido apenas ao Estado de São Paulo). Mostramos com estas ações a força da modalidade e a capacidade de inovar do judoca. Entendo, sim, que a FPJ cumpriu com seu papel, enquanto instituição, na promoção dos candidatos.”
Francisco de Carvalho acredita que a federação foi ao seu limite. “Em minha opinião, o exame presencial seria muito mais profundo nas questões técnicas e práticas. Mas diante do quadro sanitário apresentado, nosso caminho só poderia ser este mesmo. Entendo que cumprimos nosso papel. Acredito que São Paulo tenha hoje cerca de 3 mil professores de judô formados, mas precisaríamos de 6 mil para atender à demanda pública e privada. Muito se fala sobre judô escolar, mas é preciso lembrar que ainda não existe número suficiente de professores para suprir a demanda do ensino fundamental.”
Kimura acredita que a última temporada deixou muitas lições, principalmente sobre se aprender e desaprender a toda hora. Ele espera que 2021 seja o momento de inovar, focando tanto no ensino do judô quanto na formação e qualificação de professores. “Nossa comissão escolar deve retornar com força total no início do ano. Acredito muito na inovação da modalidade; nós temos agora um ano olímpico, momento em que podemos desenvolver uma série de ações para atender ao público. A ideia é começarmos com o credenciamento técnico, reunião online de delegados e elaboração de futuros eventos.”
Alessandro Puglia citou as inovações no judô escolar. “Mesmo no cenário de 2020 conseguimos dar um grande passo ao instituir a comissão com um representante em cada delegacia regional. Há um planejamento ainda em fase de construção, para avançarmos objetivamente nesta direção. Existe a possibilidade de criarmos, na universidade ou na própria FPJudô, uma graduação específica para o professor de educação física.”
“Ainda estamos desenvolvendo estas bases, mas entendo que devemos buscar caminhos para graduar o profissional de educação física que já seja faixa-preta e o graduado que trabalhe na área. Precisamos estabelecer critérios de equivalência, sem abrir mão dos fundamentos da nossa modalidade. Tenho certeza de que neste ano definiremos as bases desse processo”, previu Puglia.
“Vamos aguardar as vacinas para voltarmos com os eventos presenciais”, enfatizou o vice-presidente. “Não vislumbro outro caminho. A FPJudô ainda não planejou seu calendário de 2021 porque a Confederação Brasileira de Judô (CBJ) ainda não definiu o dela.”
Sobre vacinas, Francisco de Carvalho diz que o problema é político e não sanitário. “A questão da pandemia, que exigia uma ação muito mais ampla e objetiva da saúde pública, acabou tornando-se política. Lamentavelmente, projeções tornam-se impossíveis e não podemos fazer nenhum prognóstico. Dependemos da boa vontade dos nossos governantes.”
Sensei Ikeda aproveitou o momento de reflexão proporcionado pela pandemia para lembrar que o professor Kano foi um visionário, estabelecendo em 1882 as bases filosóficas e os conceitos que perduram até hoje e estão muito bem consolidados.
“O momento é propício para revisitarmos estes conceitos, analisar e viabilizar maneiras de aplicá-los em nosso dia a dia e auxiliar na prática. Será que o conceito do Seiryoku Zenyo pode ser utilizado em nosso cotidiano? Ou a aproximação com outras disciplinas pode ajudar no processo de ensino, aprendizagem e prática do judô? Há, portanto, uma infinidade de novas possibilidades, conforme foi profetizado pelo professor Kano, que já dizia: quando eu morrer, o Kodokan Judô não morrerá comigo porque todas as coisas podem ser estudadas, se princípios como o melhor uso da energia e a prosperidade mútua forem estudados a fundo”, propôs Ikeda
O presidente da federação paulista entende que, apesar de todo o prejuízo social e econômico, 2020 viabilizou um olhar mais amplo sobre a prática e a gestão do judô propriamente ditas.
“Estamos buscando caminhos para ampliar o campo de atuação da nossa entidade. Boa parte dessa inovação está sendo desenvolvida no recém-criado departamento científico, que se revelou uma base confiável e segura, que passa longe de achismos.”
“Recentemente fizemos uma adequação estatutária para incluir o judô escolar de forma muito mais ampla em nossa grade de eventos e ações, mas a pandemia acabou inibindo parte de nossos projetos para 2020”, prosseguiu o professor Chico. “Conseguimos colocar coordenadores escolares em todas as delegacias e implementamos alguns avanços. Entendo que o judô escolar oferecerá um olhar diferenciado para nossa modalidade e por conta disso muito em breve o judô será um complemento educacional no Estado de São Paulo.”
Retrospectiva 2020
11 de janeiro de 2021
Por ISABELA LEMOS e PAULO PINTO / BUDOPRESS